quinta-feira, 8 de abril de 2010

E DEUS CRIOU O FUTEBOL


Existe um país onde não se permitem negros ou trabalhadores braçais nos times de futebol. Lá, esse esporte é para a elite. Mulheres usando vestido e chapéu, formam a torcida ao lado de homens de terno. Ali não se diz jogo, e sim match; nem jogadores, mas footballers, tudo para deixar o povão do lado de fora. Aliviada, descubro que esse país está no passado, de volta ao século 19. Sua história foi resgatada pelo Museu do Futebol, inaugurado em 29 de setembro de 2008, por iniciativa do governo do Estado de São Paulo, em parceria com a Fundação Roberto Marinho.

Meu olhar indiferente, de quem é exceção no país que ama o futebol, já desfilou tantas vezes pelo Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, quase sem notar a imensidão de sua fachada, cuja entrada abriga torcidas em busca da paixão nacional.Também nem sabia que havia no estádio, localizado na praça Charles Miller, nome dado a um dos propagadores do futebol no Brasil, um museu sobre o esporte que agrega multidões de ponta a ponta do país.

No imenso estacionamento da entrada espalham-se carros, ônibus de escolares, vans, e até uma feira livre, que exala o irresistível cheiro de pastel frito na hora, embalando o sábado entre gritos de feirantes e perfume das flores vendidas no local. São os sons, cores e sabores que sintetizam o Brasil nessa manhã ensolarada. Não deixa de ser fascinante a expectativa de conhecer um pouco do esporte que atrai milhões de brasileiros e também outras tantas pessoas mundo afora. Estar na fila das bilheterias, debaixo de sol e muito calor, me faz sentir um pouco do que a torcida apaixonada enfrenta para ver seu time jogar. Por um momento, faço parte do seu mundo.

Grupos agendados, crianças, adolescentes, pais que levam os filhos para contar sobre a copa de 1970, avôs que mostram aos netos a história de Garrincha, percorrem animados os três andares do museu. A entrada, que fica abaixo das arquibancadas do estádio, nos recebe com uma exposição de objetos cedidos por colecionadores, que exibe diversas curiosidades, entre eles o ingresso ampliado do jogo de 19/11/69, aquele do milionésimo gol do Pelé.

Sou recebida pelo educador Daniel Magnanelli, um guia que explica tudo com entusiasmo de típico apaixonado pelo esporte. “Você sabia que já deu uma mordida nele?”, indaga, com expressão irônica, notando que olho para a foto do jogador Leônidas da Silva. E logo explica que o chocolate Diamante Negro foi criado em homenagem ao jogador que tinha esse apelido, inventor da jogada intitulada “bicicleta” e que foi um dos primeiros negros a jogar pelo Flamengo, ajudando a combater o preconceito. Magnanelli explica, também, que o museu é acessível a pessoas com deficiência, com elevadores e informações em braile e áudio, por exemplo.

Recriar a emoção vivida pelos torcedores foi um desafio que os organizadores do museu conseguiram com maestria. A sala em que se localiza o espaço do torcedor possibilita, por meio de telões gigantes, sentir embaixo das arquibancadas, a vibração, a exaltação da experiência coletiva da paixão pelo jogo. A torcida é exibida nos telões, enquanto sons de seus urros nos tornam parte dela. Impossível não se emocionar com o privilégio de viver a alegria da torcida.

Recepcionados por Pelé, que nos saúda em português, inglês e espanhol, por meio de um painel eletrônico, os visitantes percorrem uma dezena de salas que exibem a trajetória do futebol, tendo como pano de fundo as transformações sociais no Brasil. Fatos políticos e culturais que marcaram as décadas fazem um contraponto interessante com as conquistas do esporte feito com os pés, que ninguém acreditava ter futuro. Nos imensos painéis, “anjos barrocos”, os criadores do futebol arte, entre eles, Zagallo, Gerson, Nilton Santos, Pelé, Garrincha, Romário... flutuam na sala multimídia. Exposições de fotos e vídeos narram mudanças na sociedade brasileira, desde a época em que o remo era o esporte mais popular no país, em 1901. Nomes de peso na cultura brasileira, como Villa-Lobos, Carlos Drummond de Andrade, Portinari, Pixinguinha, Carmem Miranda, e outros, desfilam na sala Heróis, e mostram o que é ser brasileiro, ao lado das conquistas no esporte em cada década.

A voz de Arnaldo Antunes emociona e arrepia no documentário que narra o gol perdido pelo Brasil na copa de 1950, contra o Uruguai. Felizmente, a sala das Copas também enumera grandes conquistas, como em 1958, em que o mundo curvou-se diante do maior futebol do universo, na primeira conquista brasileira em uma copa do mundo, na Suécia. A história dos clubes, das chuteiras e das bolas também conta a trajetória desse esporte no Brasil. Talvez a garotada sinta falta de mais objetos que representam o esporte, mas poderão se divertir nas salas de pebolim, gramado virtual e chute a gol. É possível também observar o campo do estádio, de uma sacada que sai do museu.

“Parece que todo brasileiro nasceu com a bola no pé. Mas não foi sempre assim...”, começa o documentário narrado por Milton Gonçalves, com emoção contagiante. “O futebol veio para o Brasil quando este era um país dividido. De um lado, aqueles que tinham tudo, de outro, os negros e trabalhadores, que não tinham nada...” prossegue a voz do ator, enquanto tentamos assimilar tanta riqueza de informação.

Hoje, ainda estamos longe de ser um país sem desigualdades. Apesar da polêmica, as cotas raciais têm o objetivo de inserir pessoas da raça negra nas universidades brasileiras, entre tantas batalhas que tentam corrigir outras lacunas. A luta continua, mas o esporte que agregou diferenças ao longo de sua existência no país, já deu o pontapé inicial.

O Museu do Futebol funciona de terça-feira a domingo, das 10h às 18h. Mais informações pelo site http://www.museudofutebol.org.br/.

Texto/foto: Luciene Cimatti